Aramis DeBarros, no excelente livro Doze homens e Uma Missão, escreve sobre a expansão do evangelho liderada pelos apóstolos:
“Em algum lugar, em algum momento, formal ou naturalmente, os apóstolos decidiram por uma estratégia de evangelização mundial, seguindo cada qual seu próprio destino. Eusébio nos conta que os apóstolos ‘dividiram o mundo’ entre si, considerando todos os pontos cardeais.(…)
No princípio do Livro III de sua História Eclesiástica – após descrever a queda de Jerusalém – Eusébio declara que ‘o mundo habitado’ fora dividido pelos apóstolos em zonas de influência. A Tomé coube a região da Partia; João incumbiu-se da Ásia, Pedro cuidou da região do Ponto e de Roma e André da Cítia. Esta afirmação contém uma certa porção de verdade histórica, como podemos verificar no caso de João. Quanto aos demais, no entanto, torna-se muito difícil esta constatação.”
Chamando índia a uma região que abrangia desde a Etiópia até a Média, o texto apócrifo O Martírio do Santo e Glorioso Apóstolo Bartolomeu, acrescenta alguns detalhes que, embora aparentemente imaginários em alguns momentos, podem constituir a forma exagerada com que antigos cristãos perpetuaram a possível missão do apóstolo na região.
“Para a índia partiu São Bartolomeu, o apóstolo de Cristo, alojando-se no templo de Astarote e ali vivendo entre os pobres e peregrinos. Havia, pois, nesse templo, um ídolo de nome Astarote, que supostamente curava os enfermos do povo. Mas, na verdade, os enfermava ainda mais. O povo jazia na total ignorância do Deus verdadeiro. Na busca do conhecimento, sem contudo ter a quem recorrer, todos se refugiavam no falso deus o qual lhes trazia problemas, enfermidades, danos, violência e muita aflição. Quando a ele sacrificavam, o demônio, retirando-se dos enfermos, parecia curá-los. Vendo estas coisas a população, engodada, continuava a crer nele.”
A lenda continua, afirmando que a simples presença de Bartolomeu naqueles termos acabou suprimindo a atuação demoníaca sobre a população. Indignados com o silêncio do ídolo ao qual serviam, aqueles homens evocaram um certo demônio de nome Becher, na tentativa de descobrirem a razão da impotência de Astarote.
Poucas décadas antes do nascimento de Maomé, a Arábia era o lar de um rei que usava a cruz cristã como símbolo de seu poder. Escavações feitas por arqueólogos da Universidade de Heidelberg, Alemanha, trouxeram à tona a parede monumental de um palácio no qual a imagem do monarca (cuja identidade é incerta) foi gravada, provavelmente pouco antes de 550 d.C.
Em tamanho natural –cerca de 1,70 m de altura–, com uma longa túnica e um cetro encimado por uma cruz, a imagem lembra mais os imperadores bizantinos que os atuais xeiques do deserto.
A análise desse retrato e a estimativa de datação estão em artigo na revista científica “Antiquity”, assinado por Paul Yule, do Departamento de Línguas e Culturas Orientais de Heidelberg. Yule e seus colegas acharam a imagem em alto-relevo nas ruínas da antiga cidade de Zafar, no Iêmen.
Pra mim, é quase como um exercício de história alternativa, aquelas narrativas de ficção científica do tipo “o que aconteceria se” (se o Brasil fosse descoberto por ingleses, ou se os chineses tivessem criado colônias na América etc.) — no caso, o que aconteceria num mundo em que o Islã não existisse.
Quando os romanos adotaram o cristianismo no século 4º d.C., seus aliados e parceiros comerciais começaram a considerar se valia a pena adotar a nova fé. Na Etiópia, o reino de Axum (principal potência africana da época), seguiu esse caminho, mas a nobreza de Himyar decidiu agir de forma independente.
“Na época, como agora, religião e política estavam fortemente ligadas”, diz Yule. Tudo indica que, para marcar a posição não subordinada aos romanos e entrar no “clube” dos povos que adoravam o suposto “Deus verdadeiro”, os nobres de Himyar se converteram ao judaísmo.
Parecia uma solução politicamente brilhante, mas o xadrez geopolítico da região se complicou. O Império Romano do Oriente, governado a partir de Constantinopla (atual Istambul, na Turquia), resolveu aliar-se aos etíopes para impor seu controle, inclusive religioso, sobre Himyar. Motivo: a área também era considerada estratégica no confronto entre Constantinopla e os persas, seus arqui-inimigos. Por carta, o imperador romano Justino 1º exigiu que os aliados etíopes atacassem “aquele hebreu abominável”, o rei Yusuf (José), de Himyar.
Yusuf foi derrubado do trono em 525 d.C. A descoberta dos alemães sugere que o ataque deu frutos políticos, e que o trono passou a ser ocupado por um rei fantoche dos etíopes. A hipótese é reforçada pelos detalhes da coroa e das vestes do soberano, que imitam retratos reais etíopes e bizantinos da época. “Os contatos com o reino de Axum parecem ter sido o elemento mais importante nessa transição”, diz Paul Freedman, professor da Universidade Yale (EUA).
“Com os dados atuais, não há dúvidas sobre a instalação de um regime cristão no sudoeste da Arábia entre os anos 525 e 560”, diz Glen Bowersock, historiador de Princeton (EUA). Tudo indica que esse reino entrou em colapso logo depois, e a cidade de Zafar foi abandonada. A região voltou a ser dominada por grupos tribais até a ascensão do islamismo a partir do ano 622.
Pode-se dizer que o Islã seguiu estratégia parecida com a dos reis de Himyar antes da invasão etíope: adotou elementos tanto do cristianismo (veneração a Jesus e Maria) quanto do judaísmo (associação com Abraão), mas com características locais que davam independência à fé.