O mundo assistiu, aquilo que a BBC de Londres chamou de “a maior manifestação de massas da história da humanidade ocorrida em um só dia em um país”. O Egito assistiu no domingo, 30 de junho, 17 milhões de pessoas nas ruas. E em 3 de julho, foram 30 milhões. E esse que é o maior país árabe possui 82 milhões de habitantes. Cerca de 36% de sua população saíram às ruas para pedir o fim do governo de Mohamed Mursi.
As eleições de maio de 2012, de fato, foram as primeiras em 60 anos. Aos que não conhecem bem a história do Egito, desde que Gamal Abdel Nasser destituiu a monarquia do rei Farouk em 1952, em 60 anos apenas ele e mais dois generais egípcios governaram o país.
É bom lembrar que Mursi fechou os túneis de Gaza para impedir o contrabando de armas e alimentos para o Hamas. Os partidos de esquerda, se unidos, poderiam ter chegado ao 2° turno. Há um mês ele rompeu relações diplomáticas com a Síria. De fato, Mursi alterou aspectos culturais da Constituição do Egito que sempre foi laica como obrigação do uso de véu e proibição de venda de bebidas alcoólicas. Uma nova eleição dará mais chance para os partidos de esquerda e os mais islamitas, pois o partido da Irmandade Muçulmana é teoricamente mais moderado.
Resta a dúvida se o Islã está preparado para conviver com a Democracia e a tolerância religiosa. A derrubada de Mursi foi um remédio muito forte e com efeitos colaterais ainda imprevistos. Será que veremos todos os países muçulmanos divididos por guerras e novas fronteiras. Espero que não, receio que sim.
O jornalista e articulista Clovis Rossi, da Folha de São Paulo escreveu bem:
O golpe no Egito reabriu a temporada de caça aos islamitas, do que dá prova a prisão não apenas do presidente Mohammed Mursi –presidente legítimo, é sempre bom deixar claro–, mas também de um punhado de lideranças de seu partido e da Irmandade Muçulmana, a matriz de todos os grupos islâmicos no Oriente Médio. É não apenas condenável como cria o risco, se se estender, de marginalizar a participação político-eleitoral de mais ou menos um quarto da população mundial, a que é seguidora do islã.
No caso específico do Egito, movimentos islâmicos ficaram nos dois primeiros lugares na eleição parlamentar, a primeira democrática na história do país: o Partido Justiça e Liberdade, braço eleitoral da Irmandade, levou 43,4% dos votos, enquanto o mais radical Al-Nour recebeu 21,8% da preferência. Portanto, dois terços dos egípcios confiam nos partidos de fundo islâmico. É verdade que o Al-Nour juntou-se aos protestos contra Mursi, mas não por discordar de seu islamismo e, sim, para aproveitar o desgaste do presidente para “tomar a dianteira junto ao segmento islamita da população”, como escreve Nathan Brown, do Programa de Oriente Médio do Instituto Carnegie.
Derrubar Mursi pode ter sido festejado pelos liberais laicos que a ele se opunham, mas manter a Irmandade longe do poder só se alcançará se o Egito continuar sendo a ditadura que sempre foi, exceto nos últimos 12 meses.
Veja-se, por exemplo, a análise de Avi Issacharoff para o sítio “The Times of Israel”, país que acompanha com lupa tudo o que ocorre nos vizinhos e, geralmente, tem uma percepção mais aguda do que no Ocidente mais distante:
“O movimento [a Irmandade Muçulmana] permanece o maior e mais forte corpo político no Egito. De fato, se outra eleição presidencial fosse realizada hoje, a Irmandade ainda teria a melhor chance de vencer.”
Além de indecente, o golpe não resolve, como é óbvio, os problemas que minaram a gestão Mursi. Escreve, por exemplo, Marc Lynch (George Washington University):
“Ninguém deveria celebrar um golpe militar contra o primeiro presidente egípcio livremente eleito, não importa quanto ele tenha fracassado ou quanto se odeie a Irmandade Muçulmana. Tirar Mursi do campo não chegará nem perto de enfrentar as falhas que infernizaram a catastrófica transição egípcia nos últimos dois anos e meio. A intervenção militar é uma admissão do fracasso de toda a classe política egípcia, e os que agora celebram provavelmente já sabem que eles podem logo mais arrepender-se do golpe.”
Interditar o islamismo, teme o site geoestratégico Stratfor, pode levar grupos mais radicais “a abandonar a política convencional em favor da luta armada”, como de resto aconteceu na Argélia, nos anos 90, em circunstâncias parecidas.
Tudo somado, a melhor lição do que é democracia vem justamente dos perseguidos islamitas, em editorial de seu jornal marroquino, “At Tajdid”: “A história demonstra que os islamitas voltam sempre. A solução é dar aos cidadãos o direito de castigá-los ou premiá-los [nas urnas]”.