FOLHA (Eliane Cantanhede): O embaixador brasileiro no Cairo, Cesário Melantonio, previu na quinta-feira e acertou em cheio: se os “imans” (sacerdotes muçulmanos) se rebelassem contra a censura prévia do governo e convocassem a população a aderir às manifestação na sexta-feira, dia nacional de preces, o Egito iria pegar fogo. Bingo!
As pessoas saíram das mesquitas e foram às ruas, e a rebelião deixou de ser restrita a jovens e à classe média com acesso à internet e tomou conta da capital e de todas às outras grandes cidades egípcias: Suez, Alexandria, Port Said, Ismailia, Assiut e Sohag.
O partido de Mubarak, há 30 anos no poder, conquistou cerca de 95% do Congresso em eleições cuja lisura é sempre questionada. “Não deixaram uma válvula de escape para o povo”, disse Melantonio. Ou seja: não há nem mesmo canais institucionais para que a população extravase a irritação com o governo, contra os preços altos, a falta de empregos e serviços básicos públicos, a opressão política. Só sobrou a rebelião nas ruas. Perto de 50% dos 80 milhões de egípcios vivem abaixo da linha da miséria, com salários de até US$ 30 por mês, e estima-se que 40% sejam analfabetos.
Segundo o embaixador Cesário, não há ameaça à pequena comunidade brasileira, “que não passa de uma centena de pessoas”. São professores, engenheiros, executivos de multinacionais e técnicos ou jogadores de futebol, todos com boa renda e morando em bairros até agora seguros. Os turistas brasileiros no Egito somam cerca de 15 mil ao ano, mas divididos ao longo de todos os meses. Na sexta-feira, o embaixador não tinha informações sobre quantos estão no país neste momento e acrescentou que não havia nenhum plano para a retirada emergencial de brasileiros. O Brasil é o maior exportador de carne bovina, frango e açúcar para o Egito e, só com esses três itens da pauta comercial, atinge US$ 800 milhões por ano.
Além disso, o Mercosul e o Egito acabam de fechar um acordo de livre comércio em outubro do ano passado e vem aí a cúpula da América do Sul com países árabes, no dia 16, em Lima. O Brasil compartilha agora, com Estados Unidos e Europa, o temor de que a crise se alastre por todo o mundo árabe. Começou com a queda do ditador da Tunísia, invadiu o Egito, chegou ao Iêmen e já sacode a Jordânia. A diferença é que, enquanto a Tunísia é um lindo país de 10 milhões de habitantes no norte da África, pertinho da Europa, o Egito é um país poderoso, militarizado, o líder árabe. Além disso, dos 22 países da Liga Árabe, só dois mantêm relações com o vizinho Israel: justamente o Egito e a Jordânia. E Israel é o principal aliado norte-americano no Oriente Médio. Washington já perdeu o Irã (de origem persa) há tempos e não pode correr o risco de perder agora o apoio do Egito e da Jordânia, principalmente para regimes religiosos extremistas. A conclusão é que, se o mundo árabe está em chamas, o mundo todo está quente. E inseguro.
Pesquisa realizada pelo Instituto Gallup, em 2003, já indicava um aumento da tensão na Europa. Os europeus estão muito mais propensos a acreditar que uma maior interação entre os mundos muçulmano e ocidental é mais uma ameaçado que um benefício, diz o relatório. Por exemplo, dois terços dos entrevistados nos países muçulmanos dizem que há respeito pelo Ocidente, mas o acusam de não respeitá-los. Incidentes como a crise provocada pelas caricaturas do profeta Maomé reproduzidas por jornais europeus são um exemplo de que os dois lados não falam a mesmo língua.

